Memórias de um corpo que arde
- Diego Nicolau
- 7 de out. de 2024
- 3 min de leitura
COBERTURA FESTIVAL DO RIO - FERNANDO GOMES (@_fgdalmeida)
"Memórias de Um Corpo Que Arde" é um documentário ficcional extremamente criativo.
Onde a jornada de três mulheres diferentes se entrelaçam para criar o retrato de uma única mulher em diferentes momentos de suas vidas.
Esse quebra-cabeças não só é montado com uma edição impecável, mas também serve para comunicar como os taboos, opressão e agressões são histórias que permeiam a vida de qualquer mulher — ou de quase todas elas.
Um filme que carrega mais emoção em seu curto tempo de tela do que a maior parte do que se vê
hoje. A obra transita de forma bizarra entre o cômico, o mórbido e o esperançoso. Essa combinação é uma anomalia, mas de uma forma fantástica reconta a complexidade e fragmentação das vidas dessas mulheres. Que viam seus desejos virarem vergonha, suas invejas virarem desejo, suas vulnerabilidade virarem força e uma sucessão complexa de mudanças durante suas vidas. Se pra elas, numa idade avançada, recordar é viver, recordar é, também, morrer um pouco.
Esse filme caminha na linha tênue, entre o que queremos esconder nas sombras e o que desejamos trazer a luz. A dificuldade de se navegar a vida como uma mulher é retratada com uma eloquência extraordinária — ainda que eu não consiga empatizar como o público feminino. E momentos como atingir a maturidade e desenvolver seu corpo são mostrados como motivo de inveja das amigas e do desejo de ser desejada, logo contrapostos pelo assédio e violação da mulher como pessoa. Temas como esse de ambiguidade vão se reproduzir durante a obra inteira, porém com um denominador comum: todos esses sentimentos silencioso se tornam mágoas na vida dessas senhoras.
A obra, ambiciosa como poucas, tem o intuito de estabelecer um diálogo. Com a proposta da diretora sendo, basicamente, retratar nesse formato as conversas que ela gostaria de ter tido com a sua avó. Claramente em um tom de arrependimento, mas principalmente para amparar e reconfortar uma nova geração inteira de mulheres. Para evitar que o medo, vergonha, doutrinação e violência sofrida por mulheres não se repita, não seja entendida como normal. Na verdade, o filme mira em apresentar uma certa universalidade da experiência feminina que só pode ser compreendida com diálogo direto e não com a interferência da igreja, do patriarcado ou de qualquer censura que distorça a mensagem.
Todas as histórias retratam mulheres que nunca foram ensinadas nada. Uma vida escondida sob um taboo que as leva a não saber nada sobre sexo, menstruação, abuso, violência doméstica, parto, orgasmos, maternidade e uma miríade de coisas que não podiam ser faladas em alto e bom tom.
Mas, agora Memórias de Um Corpo Ardente fala em altíssimo e bom tom.
É impossível não passar por uma montanha-russa de emoções aqui. Porque no meio de todas as marcas que ficaram nesses corpos cheios de vida, muitas delas são boas também. A impressão de eventos pequenos como dar às mãos à um garoto pela primeira vez, ou de eventos colossais como conseguir fugir de um relacionamento abusivo, ambas marcam o corpo. E aqui, os eventos são apresentados de forma tão vivida e transformadora que comunicam o que as protagonistas expressam, que não há arrependimento, há um certo orgulho em tudo que foi contado. A capacidade abertamente de tudo é, pra elas, a capacidade de poder evitar a submissão de uma geração futura através do diálogo.
Além disso o filme é maravilhosamente editado e com uma direção imersiva e criativa do começo ao fim. As atuações são tão convincentes que, por vez, se esquece que a história contada ali não é da mulher e das meninas que acompanhamos do começo ao fim.
Através de Ana, Patrícia e Mayema temos uma obra fantástica sobre o que é ser mulher. Dirigida com um carinho e paixão por Antonella Sudasassi que vai conectar e como ler à todos. Uma experiência profundamente impactante sobre a importância das nossas memórias ao longo do tempo, mas mais que isso, sobre a importância de dividi-las.







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