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Kiss of the Spider Woman — Seleção de Sundance Estreias

  • Fernando Gomes
  • 3 de fev.
  • 3 min de leitura


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Depois do novo padrão de qualidade estabelecido por Emília Pérez no mundo dos musicais, o gênero ganhou uma permissividade gigantesca. Afinal, para ser pior que o filme treze vezes indicado ao Oscar, seria necessário um esforço homérico. Porém, esse não é o caso de Kiss of The Spider Woman — nada relacionado à franquia do Homem-Aranha — um musical coeso e competente do início ao fim.


O pano de fundo é a Guerra Suja na Argentina, um regime adotado durante a ditadura militar que, como todas as outras, teve um histórico de abusos, violência e desumanidade. O filme gira em torno de Valentim (Diego Luna), um prisioneiro político e revolucionário com informações valiosas, e Molina (Tonatiuh), um cabeleireiro gay preso por indecência pública — o que, muitas vezes, significava apenas demonstrações de afeto homossexual.


Valentim, introspectivo e antissocial, se blinda de qualquer contato para preservar a si mesmo e sua causa revolucionária. No entanto, quando o falante Molina entra em sua cela, ele gradativamente cede espaço. O que Valentim não sabe é que Molina trabalha para o regime, em troca de uma redução de pena, com a missão de extrair informações dele.


Com o tempo, ambos se tornam cada vez mais vulneráveis um com o outro. Para entreter Valentim, Molina decide recontar a história de seu filme favorito. Como espectadores, somos levados a uma jornada que divide a narrativa — com eficácia variada — entre um drama político e um musical da era de ouro da Broadway. Desnecessário dizer que ambas as tramas revelam mais sobre os prisioneiros, um para o outro e para si mesmos.


O filme recontado por Molina tem como grande estrela Ingrid Luna (Jennifer Lopez), uma atriz que, aos olhos dele, é impecável. Mesmo não sendo “nenhum Cidadão Kane”, ainda é sua obra favorita. Ao longo das noites em que a história é narrada, os prisioneiros passam a compreender melhor suas próprias causas e lutas por meio do fantasioso.


Dizer que Kiss of The Spider Woman é um filme sobre escapismo e o poder da arte pode parecer correto, mas, na verdade, trata-se de uma obra sobre o que distingue um sonho de um ideal. A resposta, aqui, parece estar nas motivações e, mais importante, no individualismo ou coletivismo de cada conceito.


O filme garante entretenimento para fãs de musicais, mas também é acessível para aqueles que preferem dramas. Seu maior trunfo está em Tonatiuh, cuja performance deveria impulsionar sua carreira ao estrelato. Ele carrega todo o peso emocional da obra. Diego Luna entrega um papel dentro de sua zona de conforto, bem executado como sempre, mas o grande destaque vai para Jennifer Lopez como Ingrid Luna. Talvez esta seja a melhor atuação de sua carreira, pois o papel parece ter sido feito sob medida: uma atriz famosa demais para desaparecer no personagem, latina, capaz de dançar e cantar, mas com limitações de alcance emocional — características que casam perfeitamente com um musical que se apoia em exageros e atuações propositalmente teatrais.


O drama é competente, o humor bem balanceado, mas Kiss of The Spider Woman sofre com quebras de ritmo intensas na primeira metade, especialmente na transição entre drama e musical. No entanto, à medida que nos acostumamos, essas transições ocorrem com menor frequência e quase desaparecem. O terceiro ato também apresenta problemas de ritmo, mas nada supera o maior defeito que um musical pode ter: suas músicas.


O filme possui uma paleta de cores intensa e uma fotografia que remete aos clássicos em Technicolor da velha Hollywood, além de um design de produção chamativo. No entanto, as coreografias de dança são simples demais e rapidamente se tornam repetitivas. A única exceção é uma cena em que Jennifer Lopez, em seu ponto forte, dança com uma sala cheia de homens. Fora isso, pouco aqui é memorável. Mais esquecíveis que as coreografias são as próprias músicas, que dificilmente serão lembradas após os créditos finais.


Mesmo com suas limitações, e um musical que é ofuscado por sua parte dramática, o filme é coeso e tem uma mensagem clara ao final. Boas atuações e um roteiro bem equilibrado tornam a experiência agradável. Seu grande mérito está em nos distrair dos horrores da ditadura junto com Valentim. Todo o terror, seja em subtexto, explícito ou fora dos quadros, raramente fura a fantasia contada por Molina. Embora a narrativa imaginária e a realidade cruel estejam entrelaçadas durante todo o filme de forma evidente, é apenas no final que percebemos o impacto dessa dinâmica. Assim como a sentença de Valentim, o peso do filme foi amenizado pela imaginação de Molina.

 
 
 

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